Depoimento de 1979 - Ilha da Cotinga, Baía de Paranaguá - Onde viviam guarani que trabalhavam na roça e vendiam artesanato

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  • Posted on: 25 September 2018
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Ilha da Cotinga, Baía de Paranaguá

Onde viviam, há 7 anos, Hilário e mais uma família - Guarani que trabalhavam na roça e vendiam artesanatos

Depoimento obtido em 1979

Cláudio – Fale sobre o tipo de vida e sua casa, para a gente fazer um trabalho.

Hilário – [Para fazer a casa] põe este pau pra segurar, daí coloca caibro do meio com dois cipozinhos, depois a ripa de bambu. Aí eu deixo tudo amarrado por este cipozinho aqui. Já está tudo firme. Daí eu corto taquara de aqui a três quilômetros. Puxamos de lá, dobramos no meio uma taquara inteira e colocamos lá. Aí enchemos de ripa dos dois lados.

Depois disso, vamos terminando, nós imos tirar jarová, pra secar mais. Depois ponha o barro, por fora tudo, por fora assim. Depois de pronto põe um fogão aí no meio, e não tem vento, não tem frio, não tem nada. Só aí tem que se cuidar também. Tem a hora, tem o dia, pra não sair muito pro vento e pro frio. O negócio é este aí. Tem muita que diz que o que faz mal é o fogo. Os índios morrem por causa do fogo porque saem muito no frio. Mas não é isto. Tem que se cuidar. Todo mundo se cuida. Se não se cuida pela vida ninguém se vive.

Então pra isso nós estamos fazendo esta casinha aí, que é uma casinha de respeito, não é para estar fazendo qualquer coisa nela. O verdadeiro que nós estamos fazendo é pra respeito. Agora se nós chegamos com cachaceiro aqui, chegar bêbado aqui não. Isto não aceito. Chegou bêbado aqui, ôpa! Volta pra trás. Cachaceiro não quero aqui, porque não temo.

Depois de fincar isto aqui, olhe isto tá fincado um por um, amarrado, um por um vai até lá. A gente tem que percurá a vivência naturá, a casinha é naturá, a depois de ter feito, o senhor nos escute: gente de fora não entra aqui. Se não é do meu coração, ninguém entra. Tem que ser do meu coração. E agora, qualé que vai conhecer o meu coração, que nem o senhor não conhece, nem eu conheço o coração de ninguém, mas estou vendo.

Bom, então aqui depois de deixá o foguinho aqui, eu aterro bem o fogo, Deixo bem aterradinho. Eu deixo o fogo aí e esquento a casa inteira – chimarrãozinho e uma cuia de mate. Mas também não é tudo que toma chimarrão comigo. Tem que ser do meu coração também, aí eu me fico suadinho do chimarrão, do corpo inteiro ao coração, daí eu explico qualquer negócio, como vai ser aí eu explico com é a minha gente, como é o sistema dos índios.

Eu vou explicar. Agora, se não vai entender, eu não explico. Se vai entender, aí eu explico como é o negócio. Aí eu digo, a natureza é o próprio serviço dos índios. Muita gente me diz: Oh, seu Hilário, faça uma casa de madeira, sô! Você arruma tanto dinheiro, dá pra fazer uma casa de madeira, e não quer.

Cláudio – O que acontece com o assoalho de madeira?

Hilário – Assoalhado? É outra coisa, não podemos ter isso, porque muita gente diz que a friagem a gente pega do chão. Mas isso conforme a natureza, conforme a natureza isso. Nisto nós, os índios, que somos do mato é para vivê do chão, isso não tem nada. Se é do mato, é do mato.

[Uso do cipó imbira e taquara] – Pronto, descascamos o cipó e vê esta casca para tecer a flecha, o balaio e as peneiras, e o miolo serve também pra chapéu e balaio. Bem, esta casca aqui se reparte assim pelo talo. Vai até o finar deste cipó aqui, até o finar. Depois de estar tudo partido aí pega a faca, agora no descascar, também não tem que puxar pelo direito assim, tem que puxar a favor dele, que tem que levar a favor dele, senão arrebenta tudo.

Cláudio – E as taquaras, como é que funcionam? Explique aí como é a colheita da taquara, tem que colher em determinada lua, aquela coisa que voce estava explicando: para colher na lua minguante senão dá encrenca.

Hilário – Mande tirar a foto lá então. Pra gente explicar lá, não aqui que a gente está vendo. A gente está vendo no serviço que estou explicando, senão aqui já ficou fora.

É par ficar bem certo com a casa toda. Porque eu estava explicando dentro da casinha nova assim, ficava melhor pra mim, tanto pra voces.

Cláudio – E a taquara, a coisa de colher só na lua minguante?

Hilário – Só na lua minguante, a lua cheia, depois da cheia já não dá mais. Terminou hoje. A lua nova já não dá mais pra cortar. Eu vou ter que esperar a outra lua pra eu cortar e aprontar a casa.

Cláudio – O que acontece na lua crescente?

Hilário – Na crescente faz o bicho, caruncha muito. Qualquer madeira caruncha.

[Alimentação. Plantação]

Cláudio – E da comida dos índios, aquilo que a gente estava conversando.

Hilário – Eu posso dizer que um tempo atrás, os índios tinham comida do mato, assim, sobrando, mas agora não tem também mais mato e assim vai terminando.
Então ali já não posso dizer que nós estamos vivendo dessa comida, estamos vivendo da comida de fora, sabe. Não existe mais a comida verdadeira.

Cláudio – E o sal?

Hilário – O sar? Pois é, tudo isto estou dizendo, um tempo atrás o verdadeiro se vivia do mato, de caça, mel, palmito. Bom, milho, nós tinha, batata-doce nós tinha da nossa mesmo. E daí já vai acabando, o mer não tem mais, caça não tem mais. Agora os índios estão se vivendo de farinha. Não planta mais. Mas o que corta a natureza é o sar. Os antigos disseram para mim que o sar corta a natureza. Tem que comer sar, mas também de conforme sargar, você come.

Cláudio – Aqui você está plantando agora?

Hilário – Tô plantando. Tem um milho dos índios mesmo, aqui no Brasil só existe na mão dos índios, isto eu duvido, pode correr por tudo quanto é canto, não encontra o milho se não é na mão dos índios, não encontra.

Cláudio – Os outros índios, como é que você vê assim, porque você saiu lá da reserva, se encheu de incômodo e fez sua casa tudo, então vive de acordo mesmo.

Hilário – Estou vivendo de acordo, porque por lá pelo interior os índios tão tudo virado. Alguns já não sabem mais nada, já falam da vida dos outros e quer ser muito valente. Não sou desta marca, não quero saber de briga, não quero saber de bagunça nada. Então que seja num caminho só.

Cláudio – Mas os outros continuam como índio ou não?

Hilário – Continuam como índio, isso sim, continuam.

Cláudio – Mas em alguns lugares que eu estive, as casas são mais tipo do branco já, aquelas casas feitas de madeira.

Hilário – Isso que você veja, é que nem de branco, mas também é índio.

Mas eu não, eu quero seguir sempre o meu verdadeiro, porque já mostro que sou verdadeiro. Sou índio, então sou índio.

Cláudio – O que significa o caraíba?

Hilário – Caraíba? Um homem mau, pra nós. Caraí, senhor que pode, de dinheiro.

Cláudio – Caraiporã?

Hilário – Cariporã, um homem bom. Porã é bom.